Nos últimos dias, mais uma vez uma discussão ressurgiu nas comunidades que rodeiam a cultura pop, mas especificamente a tribo gamer. Apesar da política ser repudiada em todas as instâncias pelos integrantes mais conservadores, a paixão pelo correto os retirou de suas conchas.
Em um apelo político eles abandonaram seu discurso que é tudo brincadeira, entretenimento ou besteira, assumindo um discurso novo, um discurso bem político, a paixão pela integridade histórica e étnica. Afinal, poucas coisas são mais políticas que a história, ela constrói nossa nação e sua identidade, ideais e aprendizados de onde viemos e para onde vamos, quem somos e no que acreditamos, além de importâncias hierárquicas de valor.
Durante a apresentação da Sony do novo God of War, uma personagem negra supostamente representando a mulher de Loki, apareceu na tela e desde então o nerd não dorme.
Embora ela não exista e o nerd não seja escandinavo, inclusive se intitulando cristão, era muito importante para o gamer que a cultura europeia de um povo que não o representa de nenhuma forma fosse respeitada.
O fato que tenha um semideus grego como pai de um dos maiores deuses na mitologia nórdica, ou anões azuis presentes não incomodam o nerd. Esses são detalhes irrelevantes de apropriação cultural, são licenças poéticas. O importante era que a personagem tinha que ser branca.
E por que isso?
Porque o nerd é um homem bom, é um cidadão de bem que preza pelo certo e correto em todas as instâncias. Diversas vezes o conservadores falam “parem de transformar os personagens em negro, mulher ou gay, apenas crie novos”. Claramente esse argumento é um apelo para manter a integridade, a cultura, a história e a dignidade de um povo. O nerd progressista que não os entende.
Tal atitude altruísta não é um caso isolado. Ah! “Caso isolado”, uma expressão tão familiar para as famílias afro-brasileiras. Casos questionando a mudança a etnia de personagens fictícios são comuns não só apenas na tribo gamer, mas em toda comunidade da cultura pop. Dezenas de casos são criticados sazonalmente.
Um que gerou rebuliço foi o caso da Ariel negra da Disney, onde milhares de historiadores apareceram nas redes para questionar o apagamento do ser verídico “a Sereia”, mostrando a clara opressão que brancos sofrem. Alegando um apagamento do livro (que eles nunca leram) do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen intitulado “Den Lille Havfrue”.
Claro, eles esqueceram de voltar mais na história, erro comum de historiadores formados pela rede social. Já que sereias europeias se originaram na Grécia antes de cristo em uma época em que a etnia do povo que habitava o local é debatida por antropólogos entre brancos, negros ou árabes até hoje. Ou que os relatos mais antigos das sereias são do povo Assírio em 1000 antes de Cristo.
Observando tal bela atitude política, tanto eu quanto Vinicius Vidal Rosa, o fundador e idealizador do SalvandoNerd, nos encontramos emocionados com a comunidade conservadora e com sua habilidade de abandonar seus ideais que ditam que jogos ou cultura não são políticos em prol do certo e errado.
Diante de tamanha pro-atividade para o bem comum e moralidade da sociedade, procurei outras personalidades importantes que diante de tamanho caos, crise social e desinformação a qual vivemos, passaram batido pelo bondoso nerd conservador.
1- Machado de Assis
Para começar a lista, quem melhor que um dos maiores escritores da língua portuguesa, nossa herança histórica e ápice da cultura nacional? Machado de Assis foi embranquecido pela elite intelectual da época.
O motivo é desconhecido, mas claramente não foi racismo, uma vez que o nerd conservador nos assegura que não existe racismo no Brasil, isso é coisa me americano (o qual ele mesmo idealiza). Um exemplo disso é que não tivemos as leis Jim Crow.
Claramente isso foi um equívoco histórico que passou despercebido. Embora tenham fotos onde ele aparece negro, uma mascara mortuária com traços africanos e relatos escritos que ele era “de cor escura”. Foi apenas um infortúnio do destino, e curioso que nenhum escritor branco brasileiro tenha aparecido negro por acidente.
Tal erro histórico de nossa literatura, que expandiu nossa cultura como nunca antes claramente não poder ser ignorada pelo nerd conservador. Certo?
2- Jesus
A como poderíamos esquecer dele, o maior embranquecimento da história da humanidade. O whitewashing que iniciou tudo, o pecado original, Jesus. O embranquecimento daquele que nos ensinava a amar o próximo. Antes mesmo da supremacia branca ser moda, Jesus já estava sendo retratado como homem branco de cabelos loiros e olhos azuis.
Indiretamente responsável pela dizimação dos nativos americanos, escravidão e inferiorizarão dos negros, guerras pela fé no atual oriente médio e verdadeira razão da dizimação de muitas fés “pagãs”, hoje conhecidas como mitologias, tais como a mitologia grega e sim, a nórdica.
Quero reservar este parágrafo para expor a ironia poética da reivindicação do gamer em God Of War. Toda a confusão é em prol do respeito à cultura e mitologia nórdica que esta sendo feita pelo brasileiro. Mais de 80% da população brasileira é cristã. Chances são que uma boa parte desses gamers são cristãos. A mitologia, ou na época “religião” nórdica não existe mais por atos de conversão cristã. Eles literalmente não existem mais porque o cristão não respeitou sua religião querendo impor a dele. Diferente das cruzadas, em sua maioria a conversão aconteceu por poder e dinheiro. Os Earls convertendo seu povo em troca de poder e dinheiro da igreja católica e também por facilidades comerciais. Nunca a expressão “A terra plana não gira não, ela capota”, encaixou tão bem. Pedem respeito pela religião que destruirão. Seria isso culpa? Remorso? Bem, acredito que eles preferiam ter sua religião e crença ao invés de um personagem de um jogo de videogame.
Voltando à legítima reivindicação do gamer, Jesus é um homem que segundo a maioria dos brasileiros realmente existiu, não vamos questionar a existência dele, é irrelevante ao argumento proposto.
No local que o livro sagrado relatou o nascimento de Jesus, a etnia da região era em grande maioria árabe (existem povos específicos mas para limitação do escopo adotaremos apenas o termo árabe). Poderíamos alegar os olhos claros comuns do povo persa da época, mas como talvez já tenham percebido, a Pérsia, atual Iran é bem distante de Belém levando em consideração que eles não tinham uber.
Embora não tenha nenhum lugar na bíblia que relata a aparência de Jesus, isso raramente era um hábito comum em outras religiões como a nórdica. Se determina a aparência do membro da religião de acordo com o local e o povo que estava vigente na época. Nessa linha de pensamento, Jesus seria de origem árabe e a retratação dele em filmes, novelas, pinturas, posters e artigos religiosos estariam errados.
A cultura cristã reina a vida do brasileiro de forma majoritária e estrutural, conceitos de certo e errado básicos de nossa construção são bíblicos, logo seria de urgência máxima do gamer e nerd reivindicar essa injustiça história, que eu tenho certeza que passou despercebido por ele uma vez que o real motivo de toda confusão que o gamer se deu tanto trabalho de entrar, é a fidelidade histórica e cultural.
3- Avatar the Last Air Bender
Talvez estejamos nos focando em áreas muito desconectadas da cultura Pop, embora à literatura e Jesus sejam centros de tudo que experimentamos. Então, em um passado recente o filme Avatar foi um fracasso, mas não por embranquecimento. O filme realmente era ruim. Me deixou estupefato a ausência do nerd de bem reivindicando que Katara não era uma mulher branca como a neve. Os povos de Avatar foram baseados em uma mistura cultural de países da Ásia, e o povo da água no povo Inuit.
Tinha uma coisa similar entre as nações, todas eram não brancas, porém os protagonistas, eram todos brancos. Ignorando esse pedaço de informação da fidelidade da obra original, os personagem sofreram um embranquecimento, beirando a supremacia mundial ariana do universo. Claramente o nerd de bem não pode mais se calar a isso.
4- Prince of Persia e Death Note
Talvez o Avatar tenha o problema de não ser famoso o suficiente nos olhos do Nerd conservador. Na época de seu lançamento, o filme Prince of Persia foi um sucesso por ser um jogo famoso e ter como protagonista o ator Jake Gyllenhaal. Porém, infelizmente talvez o nerd não tenha percebido que o povo Persa (Iraniano) não é branco de descendência europeia. Tanto veridicamente quanto no jogo o protagonista não devia ser branco, mas o protagonista contra todo bom senso que nos é ensinado pelo bom nerd, não segue a obra original e nem a história.
Death Note, em que os personagens de repente decidiram mudar de etnia, nacionalidade, tudo. Isso poderia talvez ser visto como uma releitura. Mas estamos aqui para aprender com o nerd de bem, e o nerd de bem diz que eles tem que ser japoneses, né? Eles estavam em algum lugar reivindicando isso, certo?
Tenho certeza que estavam, porque defender etnia e nacionalidade de apenas uma minoria, a qual nem é minoria em nenhuma instância é a real definição de supremacia e o nerd de bem só está aqui para demonstrar empatia com todos, ele está aqui para falar o que é o certo.
5- Altair (Assassin’s Creed)
Mas e vídeo games, em que contexto aconteceu o embranquecimento? O primeiro protagonista sério, dedicado, destemido e imponente Altair é branco. Eu não entendi tal fenômeno e por isso decidi ir atrás dos argumentos em fóruns do nerd de bem.
Encontrei 3 argumentos relatando o problema. O primeiro por algum motivo achou que era de vital importância relatar que existiam outros personagens brancos no jogo, os cruzados. Inicialmente não entendi o argumento e no final também não, espero um dia entender.
O segundo argumento, relatava que Altair era uma representação do Avatar de Desmond no animus e por isso ele era branco. Em Assassin’s Creed 3, ele também entra no Animus (máquina de sequenciamento da memória genética que permite reviver a vida de antepassados) e revive a vida de um antepassado nativo americano, e sua pele corresponde a do nativo americano. Antes disso em Assassin’s Creed Revelations o rosto de Altair aparece por completo, mas é completamente diferente do rosto de Desmond e continua branco. Acho que provavelmente esse nerd de bem não jogou os outros jogos, por isso se enganou.
O terceiro e último argumento é que a mãe de Altair (ou talvez o pai) era branco, então Altair seria metade branco. Acho esse conceito engraçado, pois é o mesmo argumento usado para explicar porque Cleópatra no filme original é branca de olhos azuis. Ela era meio macedônia e meio egípcia. O curioso é que sempre que um personagem é meio branco, sua aparência é de uma branco inteiro, mesmo que exista 1% de chance do personagem ser branco, ele será branco.
O personagem nunca é negro por acidente ou apresenta uma aparência mista, ele é simplesmente branco. E mesmo vivendo no sol do oriente médio, Altair é branco como leite. Que fenômeno curioso. Aparentemente o nerd de bem não tem nada a fazer aqui, meio branco é igual a branco, evidentemente. Matemática genética simples.
6 -Lara Croft e Ni-oh
Por último queria mostrar para o nerd de bem outra forma de falta de fidelidade étnica, histórica e cultural que seria importante prestarmos atenção. A infidelidade feita por relativização, desprezo e falta de importância de ideal.
Sabemos que no mundo algumas classes recebem protagonismo no lugar da outra, por mérito evidentemente. Claro que não é o branco, porque o branco sofre.
Pesquisas e mais pesquisas estão ensinando essa construção social que acontece diretamente. Para falar que algo é indesejável e repudiável, não precisa ofender diretamente nenhuma classe ou atacá-la. Precisa apenas mostrar constantemente para as pessoas qual o certo, o bonito e o que tem valor. Instintivamente por padrão social, o que não é representado será definido como algo sem valor.
Talvez o nerd de bem não tenha visto ou reparado, mas Ni-Oh é um jogo sobre um europeu indo no Japão, se tornando o salvador, considerado o único que pode salvar, ganhando rapidamente amplo poder institucional. Muito da cultura ou representação é sobre o homem inglês e como ele vê a sociedade japonesa. No jogo o japonês é coadjuvante da história do seu próprio país.
Pior ainda é quando esse tipo de infidelidade nem chega ao público. No jogo Tomb Raider a protagonista Lara Croft originalmente se chamava Laura Cruz e é perceptível nas cutscenes do primeiro jogo, onde ela mostra claramente uma descendência latina. Os desenvolvedores mudaram no último momento o nome e origem da protagonista pois acreditavam que o jogador não iria querer jogar um jogo onde ele fosse latino.
A pergunta a se fazer é: por que? O que leva uma etnia ser mudada pois pessoas não gostariam de viver com uma etnia? isso não seria desprezo? valor? Xenofobia e racismo?
Temos que ficar de olho gamer conservador, afinal fidelidade é importante.
Voltando ao Henry
Fazia tempo que não usava meu eu lírico “Henry Sincero” para dissertar informação em forma de deboche. Espero que tenham gostado da sátira social. Gostaria de falar umas últimas coisas.
Quero agradecer ao Vini pelo espaço de ampliação da minha voz em um assunto tão importante. Nos últimos dias, ainda mais depois da postagem do portal de notícias The Enemy, esse questionamento voltou e umas falácias e relativizações cruéis foram feitas.
Primeiro o argumento de que a palavra racismo está sendo banalizada. Existem várias formas de racismo e como o racismo direto é constitucionalmente crime, ele raramente é usado de forma pública, o racismo velado tomou o seu lugar na sociedade, e a relativização de um ato racista é uma forma comum dele e também conivência. Quem é conveniente com racismo, é racista.
Tanto eu quanto o Vini somos brancos, brincamos que somos brancos assintomáticos, mas entendemos o racismo como um problema de construção estrutural e institucional, isso significa que todos cresceram em um sistema racista e por isso todos são racistas, a maior arma do racismo é a negação da existência dele.
Racismo reverso não existe, pois não existe simetria social. Quando um branco é chamado de branquelo aquilo não o segue na vida, na escola, no trabalho, aquele evento acaba lá, ele sofreu uma injuria e só. O negro tem isso em cada momento e instancia de sua vida pois o ismo do racismo configura algo que é sistemático.
A relativização do racismo velado acontece também com a tentativa de tirar o foco do racismo. Se o problema fosse a fidelidade histórica, a presença de um deus grego como pai de um dos deuses mais importantes da mitologia nórdica seria mais importante do que a presença de um personagem que quase ninguém conhecia antes como negra, pois muda a história e narrativa, algo não presente no problema étnico, mas isso em nenhum momento foi questionado.
O desprezo de valor vai longe e relativizar o racismo do questionamento da inclusão de um personagem negro não é uma banalização. Meninas negras crescem sem se ver em nenhum lugar, a um nível que a boneca branca para ela é bonita e a boneca negra que parece com ela é feia. As maquiagem e produtos de higiene são feitos para peles brancas. A população das comunidades é majoritamente negra porque quando os escravos foram libertados, os brancos recusaram a contratar negros, e se recusaram a vender terra a eles. O golpe da república foi dado pois a elite não queria libertar os escravos e eles foram pagos para libertá-los. Existe um momento histórico no Brasil que trouxe europeu porque queria embranquecer a população, e essas são coisas que tirei da cabeça agora, tem tantas outras.
Dentre muitas relativizações, existe uma crueldade em falar “dois pessoas duas medidas, se fosse um personagem negro transformado em branco iam reclamar”. A realidade não é igual para todos, a sociedade não é igual para todos, e observar alguém segurando tão forte o seu privilégio chega a ser patético.
Pessoa se recusavam a ir em estabelecimentos em que negros eram proprietários, pessoas se recusam a votar em negros. Pessoas se recusavam a criar artigos de cultura com negros, e a maior representação que tinha era de deboche com black face. Transformaram um dos maiores escritores da história do Brasil, Machado de Assis em branco, pois se não conseguiram menosprezar ou desprezar a genialidade dele por meio de apagamento, a outra opção era transformá-lo em branco, como fazem com Jesus e muitos outros, pois se a pessoa merece celebração, ela tinha que ser branca.
Não existem dois pesos e duas medidas, existe o opressor se rebelando pois o oprimido ergueu sua cabeça e não aceita mais ser chacota ou saco e bancadas, e não pede, exige o lugar ao sol que sempre deveria ser dele.
Quando o assunto é racismo, não existe imparcialidade.