Em 2014, a Activision lançou no mercado o mais novo título da franquia Call of Duty, intitulado Advanced Warfare. Como habitual dentro da série, o game manteve suas estruturas ao trazer uma campanha individual, um modo multijogador e claro, o famigerado modo zumbi, em que o jogador precisa sobreviver a uma horda de mortos vivos para avançar.
Mas nenhum destes três pontos chamou tanto a atenção quanto um em específico. À essas alturas, isso já não pode ser considerado um spoiler, pois, se você tem acesso à internet, certamente conhece o meme “Press F for pay respect” (“Pressione F para prestar homenagens”, em tradução livre).
Esse foi um dos momentos mais memoráveis do jogo e que foi para além dele, sendo adotado pela comunidade gamer como uma maneira de demonstrar pesar pelo luto. Porém, nesse texto, vamos falar um pouco da origem desse meme e como isso tornou-se uma atitude bastante problemática sobre demonstrar respeito diante de uma tragédia.
A origem
Call of Duty: Advanced Warfare se passa no ano de 2054. Nele, assumimos o papel do fuzileiro de primeira classe Jack Mitchell na luta contra uma Coréia do Norte representada como “invasores terroristas que estão dispostos a tomar o poder na América do Norte”.
Durante uma ação militar que não deu certo, Mitchell e seu parceiro, o soldado Will Irons são alvo de um atentado. Você fica preso às ferragens, mas Irons puxa nosso personagem a tempo – porém, fazendo com que o personagem perca o braço. Irons então é morto após nos resgatar. Após esses eventos, nos encontramos, junto de outros soldados, no funeral do personagem e, ao nos aproximarmos do caixão, a seguinte mensagem surge: “Press ‘F’ for pay respect”, indicando para prestarmos nossas últimas homenagens ao parceiro e amigo de Mitchell.
Na época, a atitude de sintetizar um sentimento de pesar diante do luto foi bastante criticada – e aqui abro um parêntese pra dizer que tais críticas parecem ter a mesma duração de uma onda no mar, pois dificilmente você encontra materiais falando sobre isso que não sejam apenas um registro de origem do meme -, mas isso não impediu que a tal símbolo deixasse o ambiente do jogo e fosse adotado por toda uma comunidade.
Não é incomum, ao assistir uma stream ao vivo, e em certos momentos de fracasso do streamer, os espectadores digitarem “F”, como um símbolo de que houve um fracasso e que apenas uma letra é capaz de sintetizar toda uma carga emocional de respeito, admiração e luto. Será que o “F”, como forma de prestar essa homenagem, é capaz disso? Seria essa simples frase, com uma instrução do pressionar de um botão, que conseguiria colocar todo o sentimento de perda e de readaptação da vida, diante de uma morte (ou falha, nesse caso específico das transmissões ao vivo)? Vejamos o que alguns autores dizem sobre um sentimento muito interessante das relações humanas: o luto.
O luto
Não é difícil encontrar diversas definições sobre o luto. Diversas doutrinas religiosas definem o luto das mais variadas maneiras, mas uma coisa é sempre comum a ela: o sentimento de perda. Segundo o dicionário Michaelis, luto significa “sentimento de pesar ou tristeza pela morte de alguém; tristeza profunda causada por grande calamidade”.
Em seu artigo “O processo do luto”, a autora Vera Alexandra Barbosa Ramos, a mestre em Psicologia Clínica aborda esse processo de reorganização após a morte de um ente querido, amparada pelas mais variadas visões de diversos autores, como Engel, Freud, Pollock e vários outros. Segundo Engel (1961), o luto não é apenas um estado intenso de angústia, mas também um fenômeno associado a uma grande variedade de perturbações psicológicas após uma grande perda. E o mesmo pode ser dito sobre isso, na visão de Shuchter & Zisook (1993), que afirmam que o luto é um fenômeno natural que ocorre após uma perda muito significativa, mas que também é um processo individual e que varia de pessoa para pessoa.
A psicóloga ainda traz, na perspectiva de outros autores, a construção desse sentimento. Para Averill & Nunley (1992), “o luto é uma emoção considerada como uma síndrome complexa do comportamento humano”. Eles ainda dissertam que a maneira como cada indivíduo constrói esses significados é um aspecto da síndrome emocional, que são determinados por crenças e valores culturais. Valores estes, que podem ser absorvidos de qualquer vertente, inclusive dos jogos. Há diversas histórias sobre como jogadores lidaram com a morte de pessoas queridas.
Um exemplo que sempre emerge no meio desta discussão, é o funeral on-line de um jogador de World of Warcraft, mobilizando toda uma comunidade, que subverte o sentimento do luto real para seus avatares virtuais e realizam uma última homenagem real, dentro de um mundo de fantasias digitais. Mesmo cientes da nossa finitude, busca-se a manutenção das relações de afeto. E neste contexto, uma das possíveis retratações da morte dentro do ambiente cibercultural é uma morte ensaiada, ficcionalizada e testada das mais diversas maneiras é a dos jogos digitais. Huizinga (2014) diz que desde os primórdios dos jogos analógicos de poucas regras e poucas peças, o fim do jogo ou fim da ficção é uma constante. Assim como o fim da vida também é.
F não significa nada
Concluindo, é impossível impor toda uma carga emocional em apenas um disparar de uma tecla, diante de toda a estrutura emocional, de valores e crenças que isso lhe é imputado. Pressionar a tecla “F” como forma de respeito é apenas desdenhar da dor da perda e de como isso impacta a vida de várias pessoas inseridas nessa brusca mudança, tanto comportamental como emocional.
Lidar com a dor da perda é um sentimento único, individual e processual, que funciona de maneira singular para cada indivíduo inserido nesse contexto. A tentativa de fazer com que uma ação tão banal sintetize toda essa carga, contradiz o que a própria frase quer dizer: “Pressione ‘F’ para prestar homenagens”. “F” é apenas um significante, desprovido de qualquer significado. E que sem esse elemento primordial para a semiótica de Sausurre, não produz sentido algum.
Referências:
AVERILL, James R.; NUNLEY, Elma P. Voyages of the heart: Living an emotionally creative life. Free Press, 1992.
DA COSTA, Caio Tulio Olímpio Pereira et al. TANATOCIBER: REPRESENTAÇÕES DE MORTE E LUTO NOS JOGOS DIGITAIS. In: ABCIBER XIII-SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER 2020. 2021.
ENGEL, George L. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science, v. 196, n. 4286, p. 129-136, 1977.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o Jogo como Elemento na Cultura (1938). São. Paulo: Perspectiva, 2014.
RAMOS, Vera Alexandra Barbosa. O processo de luto. Psicologia-Portal do psicólogo, 2016.
ZISOOK, Sidney; SHUCHTER, Stephen R. Uncomplicated bereavement. The Journal of clinical psychiatry, 1993